sábado, 2 de outubro de 2010

Centenário da República e Cemitérios

Centenário da República e Cemitérios
Começo por lembrar que este ano comemora-se o primeiro centenário da República em Portugal, implantada a 5 de Outubro de 1910. Já apareceram publicados estudos da autoria de professores universitários sobre o assunto, além doutros artigos publicados em jornais nomeadamente no “Jornal de Notícias do Porto”. Foi uma época turbulenta, muito mais do que a recente Revolução de 25 de Abril. Basta ver o que a Professora da Universidade de Coimbra, Dra. Maria Lúcia de Brito Moura, documentou no livro intitulado “A guerra religiosa na Primeira República”, publicado em Lisboa em 2004. A autora, com base nos dados fornecidos pelos jornais locais e regionais das cidades, vilas e aldeias, dá-nos uma ideia ao vivo dos desacatos e outros excessos cometidos nesse tempo. Não é para admirar muito este fenómeno, pois muitos desses adeptos, pela falta de cultura e civismo, muitas das vezes não fazem que desacreditar um movimento. Hoje, a 100 anos de distância podemos observar melhor, com mais serenidade, e comparar mais perfeitamente as diversas tendências então em causa. Como acaba de publicar António Teixeira Fernandes,a Revolução Republicana tinha sido precedida de várias décadas antes por outra algo parecida, a Revolução Liberal. (...)
Para compreendermos melhor e sermos mais justos na apreciação do passado vou referir dois aspectos que mostram sempre a fraqueza humana nos diversos acontecimentos. O primeiro aspecto é o seguinte. Já lá vão perto de 50 anos que li num pequeno livro o seguinte; o ideal era as coisas da vida irem por evolução e não por revolução. Por “evolução” quer dizer “devagar e bem” como também diz o povo. Ora quando assim não acontece e é tantas vezes, seja por inércia, rotina ou falta de vontade de aperfeiçoamento, então a situação agrava-se e rebenta a revolução que, pretendendo atingir certos ideais em parte ou totalmente justificáveis, acarreta juntamente outros males.
O segundo aspecto é este e, praticamente em tudo, se não houver uma prevenção à partida. Há anos li a seguinte afirmação do experimentado Karl Jaherg, professor universitário suíço, e publicado em 1960 numa revista da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: “a unilateralidade é a consequência necessária de uma ideia científica que é aprofundada até ao fim”. (...) Passemos agora ao caso concreto de Pigeiros, o centenário da inauguração do cemitério e posto a funcionar desde 1910, em plena República. A Lei de 21-9-1835, feita pela Revolução Liberal, já tinha proibido os enterramentos dentro das igrejas, mandando fazer cemitérios e, enquanto estes não estivessem feitos, deixava que se enterrasse no adro. Algumas freguesias como Romariz etc. já o tinham feito antes da época da República, mas em Pigeiros foi já no princípio da República. E claro que a Lei de 1835 criou descontentamento por ir contra o costume tradicional de há tanto ano e originou a chamada guerra da Maria da Fonte de Póvoa de Lanhoso no Minho que tomou outros contornos políticos, originando a guerra da Patoleia.
Quatro anos depois da tal lei proibitiva, a Junta Geral do distrito de Bragança dizia a 27- 7-1839 que a falta de cemitérios se devia a dois obstáculos :“o primeiro é a crença da maior parte dos habitantes das aldeias que o lugar das sepulturas na igreja facilita melhor entrada da alma no Reino do Céu” e que “a construção dos cemitérios é um acto de impiedade” e o segundo obstáculo é a “falta de meios financeiros”.
Ora no desejo popular há uma parte de razão e outra parte sem ela. Que no Além, na eternidade, estejamos desprotegidos onde não temos poderes nossos, compreende-se o desejo de proximidade dos poderes sobrenaturais em relação a nós (daí os funerais religiosos, os sufrágios, etc.), mas esta proximidade não tem que ser física (ficar encostado fisicamente até aos altares do santos), basta que esteja na intenção mesmo estando fisicamente a quilómetros, basta a proximidade moral ou espiritual baseada no pensamento e no amor (isto é a alma). Ora esta deficiência de cultura no povo da época acarretou estes problemas. Conto mais outro caso parecido de tempos antigos. Em muitos lados fazia-se uma procissão às capelas de Santos, chamada procissão de clamor, porque se ia a berrar alto, a clamar para o santo ouvir, com os ouvidos do corpo (Deus sabe-o e nem tem corpo e o corpo dos santos ainda está nos cemitérios pois ainda não houve Ressurreição). Como sempre, coisas mal entendidas criam problemas.
Ainda vamos ver mais; mesmo no tempo em que se enterrava dentro das igrejas,nem toda a gente era lá enterrada. Eu sabia pelo que lia que na capela-mor era sepultado o Abade e o fidalgo da freguesia e o resto do povo era no corpo da igreja do arco do cruzeiro para baixo. Mas, ao ler o livro da história da freguesia galega de Curtis e Fisteus na província de Pontevedra, fiquei admirado ao sabeadmirado ao saber o seguinte: os ricos eram sepultados à beira dos altares e os pobres mais abaixo até à porta principal e os que não eram da freguesia (pobres de pedir, estrangeiros, idos de passagem) eram fora da igreja no adro, porque não eram da freguesia, isto é, não eram fregueses. Só os da associação chamada freguesia é que tinham esse direito. Juridicamente, em termos de lei e organização compreende-se este rigor, mas como já dizia o bispo pensador D. António Ferreira Comes acima da lei há o ambiente mais largo da moral e da espiritualidade a ter em conta, pois, lá por não ser freguês, ainda é criatura de Deus ou ainda conforme os casos, filho de Deus pelo baptismo. Mais uma vez se vê o mau resultado da falta de cultura religiosa profunda. (...) Num livro recente, publicado pelo jornal Público, comparava-se a disposição das sepulturas na igreja à que as pessoas têm na missa: à frente os mais importantes e atrás as pessoas tidas de pouco valor. Isto visto pelos olhos do corpo (sentido da vista) até pode parecer bem mas, se usarmos a inteligência da alma, é errado, que o padre como delegado de Deus deva estar perto de Deus no Santíssimo Sacramento do Altar, compreende-se, mas bem sabemos que nem todos os ricos estão à beira dos altares, tantos há no centro da igreja e até à porta do fundo. Até um “leigo” cá em baixo pode ser para Deus mais santo do que o padre lá em cima.
Quando contava o caso da freguesia galega de Curtis Fisteus ao Dr. David Simões Rodrigues, disse-me ele: “também aqui perto, em Rio Meão, eu fiz os livros da história da freguesia, também não deixaram um pobre ser enterrado dentro da igreja”. Fui ler o livro e lá vinha: tratava-se dum pobre mendigo de setenta e pouco anos, chamado Francisco de Almeida, que devia ser dos lados de Ovar e falecera a 19 de Abril de 1811, antes de da lei 1835.
Mas, curiosamente sabe-se que as autoridades religiosas já aconselhavam o enterramento fora das igrejas já antes de 1835, como se lê num documento de 27 de Agosto de 1794 no livro história de Sandim: “O pároco deve instruir os ignorantes que não querem serem enterrados no Adro, por entender que isso é para os pobres (mendigos). O visitador, entende que as igrejas devem ser restituídas à sua pureza original e mais ninguém lá deverá ser enterrado, como já acontece nos países civilizados”. Como se vê, não souberam evoluir e depois rebentou a lei de 1835. Em Pigeiros, em 7-8-1853 (já depois de 1853) um mendigo sepultado como os outros (no adro) aparece assim descrito curiosamente pelo Abade Osório: “era de Matosinhos e andava fugido a mulher, gastando-lhe tudo quanto tinha.”
Intervenção do Padre Domingos A. Moreira no Centenário do Cemitério de Pigeiros.
(Publicado com autorização do Autor)

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