Nos tempos de hoje quem anda "à rasca" e porquê?
Vejam o que diz o famoso Mia Couto.
Boa interpretação….
*Mia Couto - Geração à Rasca - A Nossa Culpa*
* *"Um dia, isto tinha de acontecer
Existe uma geração à rasca?
Existe mais do que uma!
Certamente!
Está à rasca a geração dos pais que educaram os seus meninos
numa abastança caprichosa,
protegendo -os de dificuldades
e escondendo-lhes as agruras da vida.
Está à rasca a geração dos filhos
que nunca foram ensinados a lidar com frustrações.
A ironia de tudo isto é que os jovens que agora se dizem
(e também estão) à rasca
são os que mais tiveram tudo.
Nunca nenhuma geração foi, como esta,
tão privilegiada na sua infância
e na sua adolescência.
E nunca a sociedade exigiu tão pouco aos seus jovens
como lhes tem sido exigido nos últimos anos.
Deslumbradas com a melhoria significativa das condições de vida,
a minha geração
e as seguintes (actualmente entre os 30 e os 50 anos)
vingaram -se das dificuldades em que foram criadas,
no antes ou no pós 1974,
e quiseram dar aos seus filhos o melhor.
Ansiosos por sublimar as suas próprias frustrações,
os pais investiram nos seus descendentes:
proporcionaram-lhes os estudos que fazem deles
a geração mais qualificada de sempre (já lá vamos...),
mas também lhes deram uma vida desafogada,
mimos e mordomias,
entradas nos locais de diversão,
cartas de condução e 1º automóvel,
depósitos de combustível cheios,
dinheiro no bolso para que nada lhes faltasse.
Mesmo quando as expectativas de primeiro emprego saíram goradas,
a família continuou presente,
a garantir aos filhos cama,
mesa
e roupa lavada.
Durante anos, acreditaram estes pais
e estas mães estar a fazer o melhor;
o dinheiro ia chegando para comprar (quase) tudo,
quantas vezes em substituição de princípios
e de uma educação para a qual não havia tempo,
já que ele era todo para o trabalho,
garante do ordenado com que se compra (quase) tudo.
E éramos (quase) todos felizes.
Depois, veio a crise,
o aumento do custo de vida,
o desemprego,...
A vaquinha emagreceu,
feneceu,
secou.
Foi então que os pais ficaram à rasca.
Os pais à rasca não vão a um concerto,
mas os seus rebentos enchem Pavilhões Atlânticos
e festivais de música
e bares e discotecas
onde não se entra à borla
nem se consome fiado.
Os pais à rasca deixaram de ir ao restaurante,
para poderem continuar a pagar restaurante aos filhos,
num país onde uma festa de aniversário de adolescente
que se preza
é no restaurante
e vedada a pais.
São pais que contam os cêntimos para pagar à rasca as contas da água
e da luz
e do resto,
e que abdicam dos seus pequenos prazeres
para que os filhos não prescindam
da internet de banda larga
a alta velocidade,
nem dos qualquer coisa phones
ou pads,
sempre de última geração.
São estes pais mesmo à rasca,
que já não aguentam,
que começam a ter de dizer "não".
É um "não" que nunca ensinaram os filhos a ouvir,
e que por isso eles não suportam,
nem compreendem,
porque eles têm direitos,
porque eles têm necessidades,
porque eles têm expectativas,
porque lhes disseram que eles são muito bons
e eles querem,
e querem,
querem o que já ninguém lhes pode dar!
A sociedade colhe assim hoje
os frutos do que semeou
durante pelo menos duas décadas.
Eis agora uma geração de pais impotentes
e frustrados.
Eis agora uma geração jovem altamente qualificada,
que andou muito por escolas e universidades
mas que estudou pouco
e que aprendeu
e sabe na proporção do que estudou.
Uma geração que colecciona diplomas
com que o país lhes alimenta o ego insuflado,
mas que são uma ilusão,
pois correspondem a pouco conhecimento teórico
e a duvidosa capacidade operacional.
Eis uma geração que vai a toda a parte,
mas que não sabe estar em sítio nenhum.
Uma geração que tem acesso à informação
sem que isso signifique que é informada;
uma geração dotada de trôpegas competências de leitura
e interpretação da realidade em que se insere.
Eis uma geração habituada a comunicar por abreviaturas
e frustrada por não poder abreviar
do mesmo modo o caminho para o sucesso.
Uma geração que deseja saltar as etapas da ascensão social
à mesma velocidade que queimou etapas de crescimento.
Uma geração que distingue mal a diferença entre emprego e trabalho,
ambicionando mais aquele do que este,
num tempo em que
nem um nem outro abundam.
Eis uma geração que, de repente,
se apercebeu que não manda no mundo como mandou nos pais
e que agora quer ditar regras à sociedade
como as foi ditando
à escola,
alarvemente
e sem maneiras.
Eis uma geração tão habituada ao muito e ao supérfluo
que o pouco não lhe chega
e o acessório se lhe tornou indispensável.
Eis uma geração consumista,
insaciável
e completamente desorientada.
* * *Eis uma geração preparadinha para ser arrastada,
para servir de* montada a quem
é exímio na arte de cavalgar demagogicamente
sobre o desespero alheio.
Há talento e cultura
e capacidade
e competência
e solidariedade
e inteligência nesta geração?
Claro que há.
Conheço uns bons e valentes punhados de exemplos!
Os jovens que detêm estas capacidades-características
não encaixam no retrato colectivo,
pouco se identificam com os seus contemporâneos,
e nem são esses que se queixam assim
(embora estejam à rasca, como todos nós).
Chego a ter a impressão de que,
se alguns jovens mais inflamados pudessem,
atirariam ao tapete os seus contemporâneos que trabalham bem,
os que são empreendedores,
os que conseguem bons resultados académicos,
porque, que inveja!, que chatice!,
são betinhos,
cromos que só estorvam os outros
(como se viu no último Prós e Contras)
e, oh, injustiça!,
já estão a ser capazes de abarbatar bons ordenados
e a subir na vida.
E nós, os mais velhos,
estaremos em vias de ser caçados à entrada dos nossos locais de trabalho,
para deixarmos livres os invejados lugares a que alguns acham ter direito
e que pelos vistos - e a acreditar no que ultimamente
ouvimos de algumas almas - ocupamos injusta,
imerecida
e indevidamente?!!!
Novos e velhos, todos estámos à rasca.
Apesar do tom desta minha prosa,
o que eu tenho mesmo é pena destes jovens.
Tudo o que atrás escrevi serve apenas para demonstrar
a minha firme convicção de que a culpa não é deles.
A culpa de tudo isto é nossa,
que não soubemos formar nem educar,
nem fazer melhor,
mas é uma culpa que morre solteira,
porque é de todos,
e a sociedade não consegue,
não quer, não pode assumi-la.
Curiosamente,
não é desta culpa maior que os jovens agora nos acusam.
Haverá mais triste prova do nosso falhanço?
*Nota pessoal**:* *"Minha culpa" não, não e não.
Felizmente eu não sou
assim, nunca fui
e nunca serei,
e não criei os meus filhos assim! *
*Tenho muito orgulho
e faço questão absoluta de me diferenciar desta
"choldrice"
e o diabo que carregue tais filhos
e mais quem assim os educou**
António J.M. Moreno, Ph.D.
Associate Professor Department of Life Sciences University of Coimbra
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