sexta-feira, 28 de outubro de 2011

...para reflectir


MOTE : 
O desejo nasce sempre que a alma e a impossibilidade se juntam.

…numa espécie de conspiração cósmica que num momento único, irrepetível e convergente, se apossa inapelavelmente dos nossos sentidos fazendo-nos desejar aquilo que na maior parte das vezes está para lá da nossa triste condição.
Por vezes calha bem e o desejo cumpre-se. Outras vezes, este esforço conjugado entre a impossibilidade e a alma apenas nos move numa perpétua e irracional quimera, numa absurda e inglória demanda que consiste em querer ainda mais, do que todo o mais a que temos direito.
O desejo sendo estupidamente intenso, condiciona a lucidez e o agir. Como se estivéssemos possuídos por uma estranha e obtusa vontade que sem discernir ou perguntar motivos, nos guia teimosamente o querer muito para lá dos limites de nós próprios. Uma inexplicável e faminta vontade que se alimenta da obsessão e do desatino.
O certo é que na natureza humana existe uma predisposição intrínseca e sistémica que nos empurra continuadamente para a contingência de querer encontrar ouro onde por vezes só existe palha e onde na maior parte das vezes, essa palha é o único ouro que o infortúnio nos permite achar.
Existe implícita na metafísica do desejo uma tentação perversa, que tem sido sugerida por alguns doutos doutorados, quando advogam a possibilidade de separação da impossibilidade e da alma por alegada impossibilidade da alma.
Mas se assim fosse, então o desejo seria só impossibilidade. Ou só alma.
Ou o mesmo que admitir que já se nasceu morto.

A nossa história é uma história feita de desejos. Foi com eles que fomos alimentando ao longo da vida este frágil motor a dois tempos como se tivéssemos sabido verter na sua engrenagem a mistura química perfeita. Uma espécie de combustível suficientemente eficaz e capaz de nos permitir alcançar grandes e pequenos feitos. Na verdade aqueles de que somos feitos.
No entanto, no final desse caminho por nós construído, apenas irão sobressair algumas marcas indeléveis que sob a forma de desejos foram ficando pousadas ao longo do trilho. Ténues marcas que a nossa vontade riscou deixando um rasto de desejos não cumpridos. De impossibilidades arquitectadas no aconchego da alma e que, por consciente opção fomos teimosamente perseguindo, convictos de que chegaríamos o mais próximo possível ao limiar da excelência que caracteriza uma vida plena.
E se por razões várias, daquelas que transcendem o nosso querer, o não tivermos conseguido, ficaremos pelo menos com a honrosa satisfação de termos chegado à excelente memória desse desejo.
No mínimo.
Apesar de que é discutível se neste processo de viver, a caminhada se torna mais fácil quando é feita unicamente em função do desejo.
César desejou, Napoleão desejou, e o presidente da Junta das Caldas também deseja, quanto mais não seja um novo mandato.
Na realidade todos sem excepção desejamos as mais variadas e excepcionais coisas. Por isso mesmo, o desejo faz também com que sejamos uma soma de histórias intrínsecas que arduamente, uns mais do que outros é certo, vamos zelosamente esculpindo na pedra da vida.
Munidos com o martelo do querer e o cinzel do vislumbre, delapidamos o marmóreo destino que a sorte nos confiou, dia após dia, ano após ano, vida após vida, numa rotina imaculada e silenciosa que o desejo só por inépcia permite, construindo assim e com minúcia a pedra tumular com que alguém cobrirá a nossa efémera existência. A soma de todos os nossos desejos.
E é na parte final de todo este esforço, já refastelados na senilidade do nosso sofá forrado a palha dourada e perante o olhar atónito e embevecido dos mais pequenitos ainda pujantes de desejo, que já avós desfiamos a triste história do tempo, medida em sussurros e suspiros de saudade.
Escrevemos nessa laje antecipada e com o detalhe que a memória permite, uma espécie de caracteres arcaicos que em vez de determinarem o activo e o passivo da contabilidade dos nossos desejos passados, mais não servem senão para preencher e polir por breves instantes os sulcos profundos de todas as rugas que foram sendo infligidas e acumuladas por demérito próprio ao longo da nossa arcaica vida.
Desalentados, titubeamos ao ingénuo deslumbre ali prostrado diante de nós, uma lista infindável de sucessos que ficaram por acontecer, sempre desculpados pelas tais contingências que afinal de contas não são nem mais nem menos do que lascas de dor consentidas. Erróneas convicções dirão alguns.
Ai se eles soubessem - retorquimos nós.

É esta a ponta que põe a nu um extenso rosário de frustrações que fomos incrustando na memória e que por inábil capacidade se transformaram no restolho de uma obra inacabada .
Sem sequer darmos conta, exibimos essas lascas numa espécie de homenagem póstuma ao homem comum, como quem exibe uma escultura sem nome, contemporânea daquelas esculturas chinesas, que de tão baratas, apenas servem para ornamentar o ego entristecido dos resignados.
O ego daqueles que sem qualquer noção de desperdício viveram alegremente a ilusão do inatingível.
A ilusão do quase quase, inspirada na mesmíssima angústia do cinzento que quer ser cor e na mesma ansiedade da água que um dia quis ser vapor.

A nossa história é também a história de todos, alimentada pelo modesto e imprescindível contributo que cada um dá para que o nosso futuro possa fluir, fundindo-se num mesmo e único desejo colectivo em permanente e contínua realização.
É desta maneira, que cada um destes exactos instantes se vai somando em sequência ordenada a este fluir.
È desta maneira que se vai cumprindo de forma inapelável o destino. O de cada um e o de todos.
De resto, o que permite que o presente aconteça, o passado ganhe expressão e o futuro se torne no único desejo que ainda nos falta realizar.
Na omissão de uma vontade colectiva, ou na ausência do desejo individual, o futuro torna-se diferente. Casuístico.
Um inadiado monumento à bovinidade.
O eterno prelúdio de uma estátua ridiculamente inanimada.

Saibamos pois desejar bem o Futuro.
O de cada um e o de todos.

É disso que se trata.

in " O livro que me falta escrever"
 
MOI MÊME

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